COMSO - Qual o objeto da audiência pública?
Giovanni Andrei Franzoni Gil - A audiência tratou não o caso concreto dos autos, mas o tema jurídico que baseia sua existência: o STF pretende avaliar se é possível criminalizar a conduta de apropriação do ICMS.
COMSO - O que é a apropriação tributária do ICMS?
Franzoni Gil - Toda vez que uma operação de circulação de mercadorias, uma compra e venda, por exemplo, ocorre, há a incidência de um tributo sobre consumo, o ICMS. Assim, o comprador de uma mercadoria sempre paga, dentro do preço, parcela que se refere a esse imposto, na expectativa de que estes recursos sejam entregues ao Estado para o cumprimento de sua finalidade maior, a prestação de serviços públicos. Se o contribuinte, o vendedor, retém para si esse valor, não o entregando ao Estado, defende o MPSC que configura-se o crime de apropriação tributária, previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990.
COMSO - O não pagamento de qualquer tributo, como o IPVA, pode configurar esse crime?
Franzoni Gil - Não. A lei é taxativa ao prever essa incidência para impostos que sejam cobrados dos adquirentes, ou seja, só é possivel falar na ocorrência do crime nos tributos sobre o consumo, seja ele de bens ou serviços, como o ICMS (Imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, de titularidade dos Estados) ou o ISS (Imposto sobre serviços, de titularidade dos Municípios).
COMSO - Todos os contribuintes do ICMS praticam essa conduta?
Franzoni Gil - Não. Em primeiro lugar, devemos destacar que em Santa Catarina, aonde essa criminalização já ocorre desde 1993, o peso total sobre a arrecadação, apesar de expressivo, é bastante baixo se tomado por parâmetro os demais Estados da Federação, atingindo R$ 821 milhões do total declarado de R$ 18 bilhões em 2018. Isso equivale a cerca de 4,52%. Isso significa que a grande maioria dos contribuintes age com correção, cumpre suas obrigações e entrega ao Fisco esse valor, que não pertence ao vendedor/fornecededor de mercadorias e serviços. Mas há uma minoria recalcitrante, que utiliza o dinheiro público, que é cobrado dos compradores, para proveito próprio. É quanto a esses que age o Ministério Público, visando garantir que o tributo chegue aos cofres públicos e retorne ao cidadão como serviços de saúde, educação, segurança. Além disso, permitir que esse pequeno grupo de pessoas retenham esses valores significa punir a grande maioria dos contribuintes que age com correção, cumprindo sua obrigação, pois é inevitável que logo serão atingindos por uma predatória concorrência desleal decorrente do privilégio de incremento da receita daqueles com os recursos públicos. O que deve regular o sucesso da atividade empresarial é o preço, a capacidade de inovação, e não o sistema tributário ou a viabilidade da retenção de recursos públicos.
COMSO - E quanto a essa parcela menor, mas significativa. Estão sujeitos a serem presos?
Franzoni Gil - Dificilmente teremos prisão nesses casos. Desconhecemos, de fato, que nestes mais de 25 anos de repressão a conduta alguém tenha sido preso apenas por apropriação tributária. A legislação penal tem instrumentos que limitam a viabilidade de processos penais de pequeno valor, ao reconhecer o princípio da insignificância. Apenas essa aplicação reduz a gama de 38.349 grupos econômicos que hoje procedem ou já procederam com a apropriação desses recursos para cerca de 6.133 grupos econômicos.
Além disso, existe a possibilidade de regularização da conduta, com o pagamento do tributo, que elimina o crime, ou mesmo o parcelamento da dívida com o FISCO, que impede o processo criminal se regularmente quitado. A investigação criminal, se iniciada, poderá ainda avaliar a existência de alguma causa que exclua o crime - excludentes de culpabilidade-, como, por exemplo, o calote do comprador ao vendedor. Superadas essas questões, como se trata de um delito de menor potencial ofensivo, com pena máxima de 2 anos de detenção, é possível a aplicação de benefícios processuais como a transação penal, suspensão condicional do processo ou, em caso de condenação, a suspensão condicional da pena.
Por fim, em razão da pena do crime, as penas serão convertidas em penas alternativas, como prestação de serviços comunitários ou multa, isso se, é claro, não ocorrer a prescrição, já que o sistema processual penal é complexo, com inúmeros recursos, e em razão da pena aplicável é uma possibilidade bastante concreta. Mas, ainda assim, acreditamos que a existência do crime cumpre sua função primordial, a de prevenção geral, servindo de alerta válido a evitar sua ocorrência.
COMSO - Quais as consequências de uma decisão negativa do STF?
Franzoni Gil - Além da perda da prevenção geral, com consequente incremento da prática da conduta e da sensação de impunidade, vemos um grande potencial de prejuízo aos cofres públicos e, por consequência, maior ineficiência dos serviços públicos prestados à população, que hoje já estão longe do ideal. Esse valor, reiteramos, é destacado no documento fiscal; está lá quanto é pago de tributo ao Estado naquela operação, e quem é cobrado por ele, o adquirente da mercadoria, pode e deve exigir para que o recurso, que é público, atinja essa finalidade. Sem contar em inúmeros casos graves, em que a própria pena hoje aplicável é irrisória ante seu potencial lesivo, como planejamentos tributários focados no não pagamento de tributos, ligados a manobras de lavagem de dinheiro para ocultação desse proveito do crime.
Em SC, temos casos de empresas que permaneceram por quase 5 anos praticando essa conduta, sob o argumento de crise. Quando investigado a fundo - e só foi investigado justamente pela existência do crime aqui discutido - foi possível compreender a dinâmica da atividade, que extraía recursos das empresas para empresas de fachada, em manobra de lavagem de dinheiro, para proveito do crime e frustração da execução fiscal. Isso não acontece apenas aqui, outros Estados da Federação tem apontado para o mesmo problema. O afastamento desse crime, nesses casos, eliminará o delito de lavagem de dinheiro e, por consequência, deixará impune essa prática.