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"Nós começamos a acreditar que somos aquilo que falam de nós - e não é só em relação à estética: começamos a acreditar que não somos capazes de fazer nada", desabafa Clara*, de 17 anos, vítima de bullying desde o primeiro ano do ensino fundamental. Por conta das agressões, não somente verbais mas também físicas, desenvolveu ansiedade e perdeu totalmente a autoestima. Já a empurraram e a xingaram diversas vezes por estar fora dos padrões de beleza e ter dificuldade para aprender. Apesar de não sofrer mais bullying hoje em dia, as marcas não deixam esse sofrimento ir embora. 

Na mesma escola, a apenas um corredor de distância, outro caso de bullying também motivado pela pressão estética. Bruno*, de 17 anos, usa óculos desde pequeno e tem dificuldade para engordar. "Por muito tempo fiquei totalmente isolado da sociedade; só saía do meu quarto para ir à escola. Acabei desenvolvendo depressão e ansiedade e já tentei me matar cinco vezes por não aguentar a situação", relata.

Para Clara*, Bruno* e outros milhões de alunos, que sofrem ou sofreram com isso diariamente, a escola não é um espaço seguro para se desenvolver, mas sim uma zona de risco. Segundo um relatório sobre violência nas escolas feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância em 2018, cerca de 150 milhões de estudantes afirmaram que sofreram bullying no ambiente escolar. Com o objetivo de prevenir e combater o problema, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) incentiva o diálogo e o esclarecimento sobre esse fenômeno, por meio de campanhas e orientações diversas, com ênfase na cultura do respeito e no combate aos preconceitos.

A campanha "Bullying: isso não é brincadeira" é uma forma de comunicar e esclarecer o assunto. Vídeos informativos e educativos, material para download, orientações e outras informações estão disponíveis no portal da Instituição. Os materiais podem ser utilizados em escolas e em outras instituições ou por profissionais que desejem falar sobre o tema. "O Ministério Público tem trabalhado para desmistificar o bullying: não só não é brincadeira como causa dor, sofrimento e marcas indeléveis nas vidas de muitas crianças e adolescentes. Assim, buscamos orientar a sociedade como um todo sobre a problemática, mas em especial as escolas, para que incluam em seus projetos político-pedagógicos ações de combate e prevenção ao bullying. Além disso, em casos mais graves, as Promotorias de Justiça atuam para coibir as práticas nocivas e garantir que a criança ou o adolescente receba o acompanhamento adequado pela rede de proteção", ressalta o Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude, Promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega.

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Não é um fenômeno recente

Assessora de direção em uma escola pública da Grande Florianópolis, Beatriz Prazeres conta que, no local onde trabalha há mais de 20 anos, os motivos que levam à prática do bullying normalmente estão relacionados à estética, à timidez ou às condições financeiras. "[O bullying] sempre existiu. Na verdade, percebo que era muito pior do que é hoje, só não tinha esse nome. Não era algo a ser combatido; muitas pessoas tratavam como normal ou fingiam que não viam", relata.

O termo "bullying", conhecido a partir da década de 1970, tem origem inglesa na palavra bully (em português, "valentão", "brigão") e, segundo o dicionário Aurélio, é uma ¿provocação, intimidação, ou agressão, física ou verbal, feita por indivíduo mais desinibido, mais velho, mais forte, a outro mais tímido, mais novo, mais fraco¿. Embora essas atitudes agressivas tenham o ambiente escolar como cenário principal, também podem ocorrer na vizinhança, nas redes sociais (cyberbullying), no trabalho e na família.

Colocar apelidos desrespeitosos, espalhar fofocas ou fotos, ameaçar e agredir fisicamente são algumas atitudes consideradas bullying. "'Gorda, baleia, saco de areia' era a música que cantavam para mim durante o recreio da escola. Diziam que era só brincadeira, mas não é mais 'só brincadeira' quando uma das pessoas não gosta ou não se sente confortável", afirma Clara*. 

Vítor*, de 19 anos, mora em Santa Catarina há mais de cinco anos e já sofreu com comentários intolerantes em relação ao seu lugar de origem. "Sou recifense, mas as pessoas insistem em me chamar de baiano. Perguntavam se tinha água lá, se tinha moto, se tinha carro ou se eu sabia o que era um cinema. Toda vez que eu falava, pediam para eu calar a boca, porque diziam que o meu sotaque era irritante. Já até mudei de turno por causa disso", conta.

O combate

O problema do bullying é grave, visto que afeta diversos aspectos da vida da criança e do adolescente, incluindo saúde mental, desempenho acadêmico e frequência escolar. É um problema social, não apenas algo relacionado ao comportamento agressivo de algumas pessoas, e precisa ser combatido.

"As pesquisas mais recentes sobre o tema indicam que, muitas vezes, o causador do bullying também está em situação de sofrimento e pode até ser ou ter sido vítima de bullying. Essa alternância de papéis ressalta a importância de um olhar cuidadoso da escola e da família, para orientar as crianças e os adolescentes a como proceder e para identificar precocemente quando um aluno está sendo vítima de bullying. Além disso, é sempre importante enfatizar o papel da pessoa que assiste: se esse sujeito não incentivar a prática, não achar engraçado o que está acontecendo, geralmente o bullying acaba cessando pela falta de audiência. A sociedade pode contribuir muito nesse processo, não estimulando ou repercutindo ameaças ou ofensas por questões estéticas, de aprendizagem, origem social ou regional etc. Por isso o lema da nossa campanha é `Somos todos diferentes, mas com direitos iguais", explica Botega.

Além da atuação do Ministério Público, a escola tem um importante papel no combate ao bullying. "Nós conversamos muito com os alunos, em todas as situações. Antes de chamar os pais, costumamos ter o maior diálogo possível. É responsabilidade da escola barrar essas atitudes. Se queremos um aluno bem formado, não podemos deixar que ele leve esse tipo de atitude ou sentimento para a vida lá fora", salienta Beatriz.

Baixa autoestima, depressão, isolamento, agressividade, fobias e falta de envolvimento com os colegas são alguns dos sinais que podem ser percebidos nas vítimas. É um sentimento que nunca deixa de existir, apenas perde a força com o tempo. "Hoje em dia, sempre me intrometo quando vejo alguém cometendo bullying com outra pessoa. Não quero ser uma testemunha, como muitos foram quando acontecia comigo", ressalta Clara*, que ainda guarda marcas do sofrimento que a fizeram passar por 10 anos.

* Todos os nomes foram substituídos para preservar a identidade dos entrevistados.


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CLARA*, 17 ANOS. 

"A primeira situação que tive com o bullying foi muito cedo, no primeiro ano do ensino fundamental, e só parou quando tinha 15 anos. Desde pequena sou gorda e demoro mais para aprender do que as outras pessoas. Eu só aprendi a ler na quarta série. Uma vez a minha professora, em vez de me ajudar, chamou meus pais e disse que eu não queria aprender. Já vivenciei várias situações horríveis. Já puxaram a minha perna na aula de Educação Física porque diziam que eu não jogava direito; naquele dia parei no hospital porque abri o pulso. Já me seguiram da escola até em casa me xingando. Também me deram um soco, com a justificativa de eu ser gorda demais. Até na minha família já sofri bullying. Quando tinha 10 anos, meu tio tentou me jogar do segundo andar; cinco anos depois, ele disse que ninguém foi à minha festa porque não gostavam de mim. Eu ficava sozinha no recreio para evitar comentários ruins. Passava do lado das pessoas e elas riam de mim, do meu corpo, da minha maquiagem e do meu cabelo. Até hoje escuto algumas coisas, mas não ligo mais; a gente acaba se acostumando. Algumas pessoas que praticavam bullying comigo ainda moram na rua da minha casa. Não tem como esquecer. Por conta de tudo isso desenvolvi ansiedade e minha autoestima é extremamente baixa, eu praticamente não tenho. Nós começamos a acreditar que somos aquilo que falam de nós - e não é só em relação à estética: começamos a acreditar que não somos capazes de fazer nada. Hoje em dia, sempre me intrometo quando vejo alguém cometendo bullying com outra pessoa. Não quero ser uma testemunha, como muitos foram quando acontecia comigo".


PostLARISSA*, 18 ANOS.  

"Tudo começou quando eu tinha oito anos. Já ouvi muita gente me perguntando se eu ficava encalhada nos lugares por onde passava. O bullying era sempre relacionado à minha estética. Passei todos os recreios do meu ensino fundamental no banheiro, sozinha. Me sentia reprimida e muito diferente de todo mundo. Achava que não tinha a oportunidade de ser feliz. Na frente das pessoas fingia que não ligava, mas chegava em casa e chorava muito. Não conseguia contar aos meus pais porque não queria compartilhar a tristeza que estava sentindo. Só fui procurar ajuda com 13 anos, quando comecei a ir na psicóloga. Atualmente tenho ansiedade por conta de tudo que já ouvi sobre mim, além de toda a pressão que ainda existe para eu emagrecer. Mas, apesar de todo sofrimento, busco conversar com outras pessoas que estão passando pelo que já passei. É sempre mais fácil desabafar com alguém que entende daquilo".

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JÚLIA*, 26 ANOS.  

"O bullying começou quando eu tinha seis anos. Sofria por ser gorda, por usar óculos e por ser quieta. Queria sair correndo quando falavam algo de mim. Por um tempo, até parei de usar óculos. Vou na psicóloga há quase 20 anos e faço hipnose para tratar dos meus traumas. Hoje o bullying não acabou, só mudou de forma. Sou segunda professora e meus alunos frequentemente falam que sou burra demais para ensinar alguma coisa a eles. É um trabalho interno constante para tentar superar. Atualmente, tento conversar com meus alunos que sofrem com isso e sempre encaminho para que a direção da escola resolva".


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BRUNO*, 17 ANOS.  

"Sofro bullying desde os seis anos. Começou por conta dos óculos que eu usava, já que não era comum uma criança tão pequena usar. Depois de um tempo, vieram outros motivos: sou muito magro e muito tímido. Nunca fui uma pessoa de muitos amigos; sempre fiquei muito sozinho. Me diziam que eu nem deveria existir. Por conta de tudo isso, me tornei uma pessoa agressiva. Tento sempre manter a calma quando falam algo de mim, mas, quando isso ultrapassa o meu limite, vou para cima de qualquer um que aparece na minha frente. Já até mudei de escola porque não conseguia mais olhar na cara daquelas pessoas. É bem difícil superar. Eu, por exemplo, ainda não consegui. Por muito tempo, fiquei totalmente isolado da sociedade. Só saia do meu quarto para ir à escola, que é justamente o lugar em que sofro bullying. Acabei desenvolvendo depressão e ansiedade. Já tentei me matar cinco vezes por não aguentar a situação e hoje tomo remédio para me sentir melhor. Atualmente, tento ajudar porque muitos não me ajudaram. Ninguém merece isso. Não consigo mais socializar com as pessoas. Acho que todo mundo pode me fazer sofrer".

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VITOR*, 19 ANOS.  

"Assim que cheguei em Santa Catarina, sofri muito bullying. As pessoas riam do meu sotaque e zombavam o lugar de onde vim. Sou recifense, mas as pessoas insistem em me chamar de baiano. Perguntavam se tinha água lá, se tinha moto, se tinha carro ou se eu sabia o que era um cinema. Toda vez que eu falava, pediam para eu calar a boca, porque diziam que o meu sotaque era irritante. Já até mudei de turno por causa disso. Mesmo não sendo uma pessoa tímida, tinha vergonha de falar para que ninguém risse do meu sotaque. Quando resolvi pedir ajuda à direção da escola, falavam que eu era muito chorão. Hoje, digo às pessoas que sei que estão sofrendo bullying para procurarem ajuda o mais rápido possível. É sempre o melhor caminho".