Sandro José Neis
Promotor de Justiça
Coordenador de Defesa
da Moralidade Administrativa

O advento da Emenda Constitucional nº 19/98 proporcionou ao regime jurídico referente à Administração Pública, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, sensíveis alterações, dentre as quais destacam-se, neste estudo, aquelas afetas ao artigo 37, inciso XI, e ao artigo 29, incisos V e VI, da Lei Fundamental, que agora estabelecem, in verbis:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I - (...);

XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal".

"Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

I - (...);

V - subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos
Secretários Municipais fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III e 153, § 2º, I.

VI - subsídio dos Vereadores, fixado por lei de iniciativa da Câmara Municipal, na razão de, no máximo, setenta e cinco por cento daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Estaduais, observado o que dispõem os arts., 39, § 4º, 57, § 7º, 150, II, 153, III e 153, § 2º, I".

Com arrimo nos referidos preceitos, não são poucas as Câmaras Municipais que vêm alterando a legislação das respectivas urbes, sob a justificativa da necessidade de `adaptação" da normatividade local às novas diretrizes constitucionais. Todavia, quase a totalidade dessas recentes leis municipais editadas trazem, em seu bojo, sensíveis e desproporcionais aumentos remuneratórios a serem aproveitados pelos ocupantes dos cargos eletivos locais, ou seja, pelos Vereadores, Prefeito e Vice-Prefeito.

Esses acréscimos pecuniários trazidos pelos novos regramentos, tão logo publicados, têm gerado a irresignação dos munícipes, que, por julgá-los atentórios à moralidade administrativa, e no intuito de vê-los rechaçados do ordenamento jurídico municipal, recorrem aos órgãos ministeriais lotados em suas respectivas comarcas.

O presente estudo, que não tem o propósito de esgotar a matéria, objetiva apenas traçar algumas reflexões quanto a legalidade desses recentes preceitos normativos.

1. Da eficácia do artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal

Embora todas sejam dotadas de eficácia jurídica - pois inovam o ordenamento vigente ao tempo em que são editadas - " O que se pode admitir é que a eficácia de certas normas constitucionais não se manifesta na plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida"[1].

Assim, a eficácia jurídica das normas constitucionais é graduada em três níveis, a saber: dotam-se de eficácia plena aquelas normas que têm aplicabilidade imediata, direta, integral, independendo de legislação posterior para a sua inteira operatividade; as normas de eficácia contida são aquelas que, inobstante tenham aplicabilidade imediata, podem ter reduzido seu alcance pela atividade do legislador infraconstitucional; por derradeiro, tem-se como de eficácia limitada as normas que dependem da emissão de uma normatividade futura, sem a qual são insuscetíveis de serem concretamente aplicadas[2].

No que toca, em particular, àquelas de eficácia limitada, José Afonso da Silva as divide em normas constitucionais de princípio institutivo e normas constitucionais de princípio programático.

Ainda segundo o monografista antes mencionado, aquelas de princípio institutivo, são "as que contêm esquemas gerais, um como que início de estruturação de instituições, órgãos ou entidades, pelo que também poderiam chamar-se normas de princípio orgânico ou organizativo", tendo por característica fundamental o fato "de indicarem uma legislação futura que lhes complete a eficácia e lhes dê efetiva aplicação"[3].

Nos moldes conceituais propostos, fica evidente que o preceito insculpido no artigo 37, XI, da CF (com redação dada pela Emenda Constitucional n° 19/98) é uma norma constitucional de eficácia limitada e de princípio institutivo.

Norma constitucional, porque faz parte do seleto grupo que formalmente integra a Carta Magna da República; de eficácia limitada, porque depende de legislação que a integre; e de princípio institutivo, por duas razões, a saber: a) primeiramente porque, não obstante não se refira a órgãos, instituições ou entidades, há de servir de base para a estruturação de todo o sistema remuneratório previsto pela Emenda Constitucional n° 19/98; b) em segundo lugar porque, ainda que indiretamente, através do artigo 48, XV - cujo texto atribui ao Congresso Nacional a fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, por lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal - indica a legislação capaz de lhe completar.

Transcreve-se aqui, por oportuna, a deliberação proferida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião da sessão administrativa realizada em 24/06/98, in verbis:

"Não são auto-aplicáveis as normas do artigo 37, XI e 39, § 4º, da Constituição, na redação que lhes deram os artigos 3º e 5º, respectivamente, da Emenda Constitucional n.º 19, de 4 de junho de 1998, porque a fixação do subsídio mensal, em espécie, de Ministro do Supremo Tribunal Federal - que servirá de teto - nos artigos 48, XV, da Constituição, na redação do artigo 7º, da referida Emenda Constitucional n.º 19, depende de lei formal, de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal. Em decorrência disso o Tribunal não teve por auto-aplicável o artigo 29, da Emenda Constitucional n.º 19/98, por depender a aplicabilidade dessa norma, da prévia fixação, por lei, nos termos acima indicados".

Estando, pois, demonstrado que enquanto não sobrevier legislação capaz de integrar-lhe a eficácia, o inciso XI, do artigo 37, da CF, na redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 19/98, não é passível de aplicação, resta esclarecer qual a legislação a ser adotada para reger o sistema remuneratório da Administração Pública neste ínterim.

Para tal, esclarecedores são os ensinamentos de José Afonso da Silva, que assim escreveu ao analisar o disposto no artigo 16, § 2º, da Constituição de 1967:

"O referido dispositivo dizia o seguinte: `Somente terão remuneração os vereadores das Capitais e dos Municípios de população superior a cem mil habitantes, dentro dos limites e critérios fixados em lei complementar". Regra como essa, do ponto de vista da eficácia e aplicabilidade, deve ser analisada sob dois ângulos: a) ao dizer que somente teriam remuneração os vereadores das Capitais e Municípios indicados, exprimia uma proibição de remunerar outros vereadores; (...); b) ao dizer que somente os vereadores das Capitais e dos Municípios de população superior a cem mil habitantes `teriam remuneração" dentro dos limites e critérios fixados em lei complementar, outorgara um direito cuja eficácia, em relação à situação preexistente, não era de grande realce, por dois motivos: 1) para os vereadores que já percebiam remuneração, conforme o art. 28 do Ato Institucional 2, aquela regra constitucional foi simplesmente `confirmativa", e, em tal caso, a situação jurídica básica preexistente teve sua continuidade reconhecida, devendo perdurar, como era, até que a lei complementar lhe desse nova configuração, através do estabelecimento de novos limites e critérios (grifo nosso); 2) nas hipóteses em que os vereadores não eram remunerados anteriormente, mas, então, poderiam sê-lo com base no inciso constitucional em questão, a norma não tinha aplicabilidade imediata e direta, pois que, para eles, ela criou situação nova que só poderia ser juridicamente configurada dentro dos limites e critérios previstos na lei complementar, de sorte que qualquer norma que fosse criada, atribuindo remuneração a tais vereadores, infringiria aquela do art. 16, § 2º, não aplicável, no caso, sem a lei complementar."[4]

E, quanto às normas de eficácia limitada, de natureza confirmativa, arremata o mesmo jurista: "se são confirmativas de situação jurídica preexistente, esta permanece reconhecida, como era, até que a lei integrativa lhe imponha a alteração prevista (grifo nosso)"[5].

Na verdade, a nova redação do artigo 37, XI, da CF (redação dada pela Emenda n° 19/98) têm duas facetas. Vejamos:

1) estabelece norma confirmativa, ou seja, ao prescrever que a remuneração de todos aqueles ligados à Administração Pública não poderá exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nada mais fez do que confirmar que todos os agentes ali elencadas - dentre os quais encontram-se os Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores - têm direito a receber contra-prestação pecuniária pelos serviços que prestam àquela mesma Administração Pública;

2) estabelece novos limites e critérios remuneratórios, os quais só terão eficácia após regulamentação. E, no que toca ao subsídio dos Ministros do STF, só terá eficácia, ou seja, só poderá servir de parâmetro para o restante do sistema legal referente às remunerações quando devidamente aprovado pela lei prevista no inciso XV, do artigo 48, da CF.

Como também coloca José Afonso da Silva, "Em certos casos, a não-existência de uma lei integrativa de determinada regra constitucional importa a limitação de quase todo um conjunto de disposições. Suponha-se, por exemplo, que não se promulgasse a lei complementar prevista no art. 121 da Constituição sobre a organização e a competência dos tribunais, juizes de direito e de juntas eleitorais. Não só os ditames desse artigo, mas todas as prescrições constitucionais pertinentes aos procedimentos eleitorais, ficariam praticamente inertes"[6].

Mais uma vez, os ensinamentos do nobre doutrinador encaixam-se à questão ora analisada. Indubitavelmente, em não sendo eficaz a norma do artigo 37, XI, da CF, inertes são todas as demais disposições constitucionais que têm naquela, um antecedente lógico e limitativo. Se a "mola mestra" do novo sistema remuneratório apregoado pela Emenda Constitucional 19/98 (qual seja, o artigo 37, XI) dota-se de eficácia limitada, a normatividade jurídica que dela deflui outro nível de eficácia não pode ter, senão, também, o limitado.

Seguindo a linha de raciocínio acima adotada, tem-se, pois, que a nova redação dada aos incisos V e VI, do artigo 29, da CF (de acordo com a Emenda Constitucional 19/98) - cujos textos dispõem, de forma específica, sobre a fixação dos subsídios dos Prefeitos, dos Vice-Prefeitos e dos Vereadores - apenas tornar-se-á aplicável após devidamente fixado o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Nestes termos, até que o artigo 37, XI, da Constituição Federal reste devidamente regulamentado, a remuneração dos ocupantes de cargo eletivo é, certamente, aquela estabelecida pela legislação imediatamente anterior à edição da Emenda Constitucional 19/98.

2. Dos limites estabelecidos pela Constituição do Estado
quanto à remuneração dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores

Segundo anteriormente abordado, os subsídios dos Prefeitos e Vice-Prefeitos deverão ser fixados por lei de iniciativa da Câmara de Vereadores. O dos Edis, por sua vez, também fixados por lei de iniciativa daquela Casa Legislativa, não poderão ultrapassar o valor correspondente a 75% (setenta e cinco por cento) do subsídio, em espécie, dos Deputados Estaduais (CF, art. 29, V e VI), nunca se olvidando que a fixação dos subsídios de todos os agentes vinculados à Administração Pública tem, como limite máximo, o valor do subsídio dos Ministros do STF (CF, art. 37, XI).

Todavia, com relação à Santa Catarina, a Constituição Estadual - a quem as leis orgânicas municipais (nos termos do artigo 29, caput, da CF) e por conseguinte, as demais disposições legais estabelecidas em âmbito municipal, devem atenção - prevê em seu artigo 111, V, que a remuneração dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores deve ser fixada até seis meses antes do término da legislatura, para a subseqüente.

Questiona-se: A norma insculpida no artigo 111, V, da Carta Estadual, foi revogada pela Emenda Constitucional n° 19/98? Nos parece que não. Vejamos.

Conforme assevera Michel Temer, "o Estado federado titulariza competências residuais, expressas, em comum, concorrente e suplementar"[7].

Por competência residual, em particular, entende-se aquela que confere aos Estados-membros o poder de legislar sobre as matérias não reservadas expressamente à competência dos demais entes federados (União, Distrito Federal e Municípios).

E foi justamente dessa competência residual (que aos Estados-membros é outorgada pelo artigo 25, § 1º, da Constituição Federal) que o legislador valeu-se para impor, de forma legítima, um limite temporal à aprovação das leis condizentes com a remuneração dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores dos Municípios de nosso Estado (Carta Catarinense, art. 111,V).

Outrossim, ponto pacífico na jurisprudência e na doutrina pátrias, é o fato de que a norma presente na Constituição dos Estados-membros deve irrestrito respeito ao regramento constante na Constituição da República.

Conforme Pinto Ferreira, "A atuação da Constituição Estadual está, destarte, limitada pelos seguintes preceitos: a) princípios constitucionais expressos; b) normas constitucionais esparsas no texto da CF"[8].

E esta atenção aos ditames da Carta Maior é devidamente guardada pelo artigo 111, V, da Constituição Catarinense, mesmo após o advento da Emenda n° 19/98. Vejamos:

a) a nova ordem constitucional impõe três preceitos básicos à fixação dos subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores: o primeiro dita que os mesmos serão fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal; o segundo, que os subsídios dos Vereadores não ultrapassarão o valor referente a 75% daqueles previstos para os Deputados Estaduais; o terceiro, que nenhum deles pode ultrapassar o valor do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;

b) o artigo 111, V, da Constituição Estadual, por sua vez, apenas cria um prazo - qual seja, aquele referente aos últimos seis meses da legislatura - para que os subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores sejam fixados pelas respectivas Casas Legislativas.

Portanto, o preceito constante na Constituição Estadual, não se contrapõe àqueles fixados pela Constituição Federal, pois enquanto esta dispõe sobre a competência legislativa para fixação dos subsídios e sobre os limites quantitativos que os mesmos devem respeitar, aquela determina o momento em que a fixação dos subsídios deve ocorrer, impondo limite temporal. Na verdade, a norma estabelecida pela Constituição Estadual mantém-se em harmonia com as traçadas pela Carta Magna Federal, até porque objetiva dar efetividade aos princípios da impessoalidade e moralidade dos atos administrativos, os quais são basilares da administração pública.

Vale destacar que o Tribunal de Contas do Estado, nos autos do processo n° COM-0367900/82, além de decidir que a norma contida no artigo 37, XI da Emenda Constitucional n° 19/98 não é auto-aplicável, entendeu "como em pleno vigor a norma contida no inciso V, do artigo 111, da Constituição do Estado de Santa Catarina, pela qual a remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores será fixada até seis meses antes do término da legislatura, para a subseqüente".

Ademais, a Emenda Constitucional n° 19/98 foi promulgada objetivando a contenção de gastos. Aliás, todas as justificativas foram neste sentido. Assim, seria incoerente entender que as normas trazidas pela nova redação do artigo 29, V, da CF não permitem que novos limites sejam estabelecidos pelas constituições estaduais.

Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo a possibilidade de alteração do valor nominal da remuneração de tais agentes políticos apenas para compensar a desvalorização monetária decorrente da corrosão inflacionária.

Ensina o doutrinador Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in verbis:

"... Igualmente, estipula que a remuneração será fixada numa legislatura para todo o período de mandado subseqüente. Nada obsta, porém, que essa remuneração seja reajustável periodicamente segundo critérios prefixados, que levem em conta particularmente a depreciação monetária"[9].

Em algumas oportunidades assim se manifestou a jurisprudência:

"Afigura-se viável, dentro da mesma legislatura, a atualização da remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores, a fim de manter no tempo o valor nominal da moeda, corroído pela espiral inflacionária."[10]

Extrai-se do corpo do acordão relativo à Argüição de Inconstitucionalidade na Apelação Civil n° 50.752, in verbis:

"Bem assinalou a sentença de Primeiro Grau que `uma vez estipulado a remuneração, esta será para toda a legislatura subseqüente, ou melhor enfatizado, para todo o período de mandato imediato" (fls. 177)."

"É essa, sem dúvida, a correta exegese do inciso V do art. 29 da Constituição Federal, que estabelece dever a remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores ser fixada `em cada legislatura, para as subseqüente", não cabendo nesta conceder-se novos aumentos, ressalvados reajustes, isto é, mera atualização ante a corrosão inflacionária, o que não foi o caso, contudo, do aumento objeto da Lei n° 1.776/93" (grifei) [11].

Diante disso, conclui-se que:

I. a remuneração a ser auferida pelos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores catarinenses que atualmente exercem suas funções junto aos respectivos poderes, não é outra, senão aquela que foi estabelecida pelas Câmaras Municipais até seis (06) meses antes do término da legislatura antecedente à atual, qual seja, a referente ao período compreendido entre os exercícios de 1993 a 1996;

II. qualquer alteração quanto a remuneração de tais agentes políticos, se realizada até seis meses antes do término da atual, somente terá eficácia para a próxima legislatura;

III. qualquer majoração do valor nominal anteriormente fixado, segundo alguns posicionamentos sustentados na doutrina e na jurisprudência, somente é permitido para compensar a desvalorização decorrente da espiral inflacionária.

3. Natureza jurídica das "leis" aprovadas
pelas Câmaras Municipais

Nas palavras de Limongi França, "Diz-se legal aquilo que é conforme à lei, do mesmo modo que por legalidade se entende a qualidade daquilo que é legal. Portanto, a rigor, não é possível a concepção de leis que legais não sejam. Basta que um preceito emanado do poder público não se coadune com as normas hierarquicamente superiores para que não seja uma `lei" no sentido próprio, ainda que lato, do termo, deixando assim de trazer consigo qualquer força obrigatória"[12].

Já Machado Pauperio ensina que "A lei traduz a existência do direito vigente, do chamado direito positivo, sendo mesmo a lei a fonte por excelência deste. Sob o ponto de vista jurídico, a lei é ato do Estado, emanado de um de seus poderes, o legislativo, e segundo a forma prescrita na Constituição do país"[13].

Ainda, na lição de José Afonso da Silva, "todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se conformarem com as normas da Constituição"[14].

Da ementa exarada pelo Superior Tribunal de Justiça, por ocasião dos Embargos de Declaração no Recurso em Mandado de Segurança nº 7313/RS, Relator o Ministro Humberto Gomes de Barros, colhe-se o seguinte excerto:

"Só é possível afirmar que o cidadão atuou na formação de determinado dispositivo legal, quando tal preceito gerou-se, no seio do poder legislativo, em obediência ao processo legislativo traçado na Constituição e normas que a regulamentam".

Resta, pois, cristalino, que as normas que vêm sendo editadas por inúmeras casas legislativas dos municípios catarinenses não podem ser tidas como "lei", ou seja, como normas cogentes dotadas de obrigatoriedade. Pelo contrário, nada mais são do que deliberações arbitrárias e insuscetíveis de gerar qualquer efeito jurídico, visto que, ao tempo de sua edição, desrespeitam preceitos constitucionais cuja aplicabilidade é indiscutivelmente plena.

Concluindo, nos parece evidente que os pagamentos calcados em tais normas são indevidos, o que vem gerando prejuízos aos cofres públicos dos municípios catarinenses.

4. Das providências que podem ser
adotadas pelo Ministério Público

Compete ao Ministério Público, dentre outras funções institucionais, exercer o controle da legalidade dos atos administrativos, devendo, para tanto, adotar as providências administrativas e judiciais previstas em sua esfera de atuação.

Como bem asseveram Marino Pazzaglini Filho e outros, "é assim que o parquet participa do controle jurisdicional, provocando sua incidência, ensejando a que o órgão judicante saia de sua inércia original e característica ... O Ministério Público é o fiscal por excelência, que torna possível o controle pelo Estado-Juiz das condutas administrativas suscetíveis de lesionar o erário ou que atentem contra os princípios constitucionais da administração"[15].

Como determina o Texto Fundamental de 1988, representa o Ministério Público a instituição encarregada de resguardar a ordem jurídica democrática (artigos 127 e ss., da CF), sendo que para tanto armou-o com toda a legitimação pertinente.

Desta forma, nada mais natural que seja fiscal dos atos emanados da Administração Pública, no intuito de preservar a integridade material, legal e moral, mediante o exercício responsável e amplo da investigação que lhe é afeta institucionalmente.

Após definir o Ministério Público como guardião permanente da ordem jurídica e democrática, essencial à função jurisdicional do Estado, evidenciando a coerência do sistema, a Carta Magna, no artigo 129, inciso III, outorgou-lhe, como função institucional, a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social e de outros interesses difusos e coletivos.

A defesa do patrimônio público consiste, ademais, na defesa de um interesse difuso, podendo este ser conceituado como os interesses ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (artigo 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor).

Paulo de Tarso Brandão esclarece que "é inegável o caráter preponderantemente difuso do interesse que envolve a higidez do erário público. Talvez seja o exemplo mais puro de interesse difuso, na medida em que diz respeito a um número indeterminado de pessoas, ou seja, todos aqueles que habitam o Município, o Estado ou o próprio País cujos governos cabem gerir o lesado patrimônio..."[16]

A jurisprudência, por sua vez, assim vem se pronunciando:

"RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. CÂMARA MUNICIPAL DE IGARAPÉ. REAJUSTE DE VEREADORES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO MUNICIPAL. REPARAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. POSSIBILIDADE. Conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público, visando o ressarcimento de possível dano ao erário" (STJ, RESP 164649/MG, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca).

E mais:

"PROCESSUAL CIVIL " MINISTÉRIO PÚBLICO " LEGITIMIDADE " AÇÃO CIVIL PÚBLICA " RESSARCIMENTO AO ERÁRIO.

O Superior Tribunal de Justiça já pacificou entendimento segundo o qual tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública, visando ao ressarcimento de danos ao erário municipal. Recurso provido" (STJ " RESP 119827/SE, Rel. Min. Garcia Vieira).

Por outro lado, a própria Lei n° 8.429/92, ao tratar do processo judicial relativo à apuração dos atos administrativamente improbos, prescreve, em seu artigo 17, a legitimação do Ministério Público para propor ações nesse sentido.

Conclui-se, portanto, que o Ministério Público detém legitimidade para promover medidas objetivando a proteção do patrimônio público.

Cumpre destacar, neste tópico, que qualquer cidadão é parte legítima para ajuizar ação popular objetivando a invalidação de atos lesivos à moralidade administrativa e ao patrimônio público (Lei nº 4.717/65 e Constituição Federal, art. 5º, LXXIII).

Entretanto, frente às inúmeras dificuldades com as quais a população se defronta, a previsão deste remédio constitucional praticamente se reduz a figura de retórica, transformando o cidadão em mero espectador dos acontecimentos ilegais e abusivos. Isso acontece por três motivos fundamentais. Primeiro, porque o acesso ao Poder Judiciário ainda tem algumas limitações, até porque a ação é privativa aos "cidadãos". Segundo, porque o processo não é simples, necessitando o requerente de recursos técnicos que não estão ao alcance da maioria das pessoas, as quais, em regra, são desprovidas de estruturação adequada e advogados especializados. Por último, porque a maciça maioria da população é carecedora de informações, tendo dificuldades em obter as provas necessárias à instrução do processo judicial.

Assim, é de fundamental importância a atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio público. Passa a Instituição, diante de tal contexto, a ser considerada como a principal, se não a única, arma que dispõe a sociedade para combater as práticas ilegais e abusivas cometidas por autoridades e agentes públicos desvirtuados da busca do bem comum e da boa gerência da coisa pública.

Dentro deste prisma, poderá a Instituição, dentre outras medidas, através do Procurador-Geral de Justiça (artigo 85, III, da Constituição do Estado) ou do Promotor de Justiça atuante nas diversas Comarcas do Estado (inciso VII, do referido artigo) ajuizar a competente ação direta de inconstitucionalidade, objetivando a declaração de inconstitucionalidade da lei municipal instituidora dos acréscimos remuneratórios em comento.

Ainda, poderá o Ministério Público deflagrar ação civil pública no sentido de impedir o pagamento dos acréscimos remuneratórios indevidos, para obter o ressarcimento dos danos causados ao erário público ou ainda para impor sanção, face o cometimento de eventuais atos de improbidade.

Em face do exposto, nos resta concluir que a remuneração devida aos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores é aquela que foi fixada pelas Câmaras Municipais até seis (06) meses antes do término da legislatura antecedente à atual, qual seja, a referente ao período compreendido entre os anos de 1993 a 1996

É inadmissível, pois, que, ao arrepio da sistemática legal relativa ao tema, Vereadores editem leis no intuito de verem suas remunerações, assim como as dos Prefeitos e dos Vice-Prefeitos, indevidamente acrescidas, o que legitima o Ministério Público, dentre suas funções institucionais, a adotar providências tendentes a reverter tal afronta constitucional.



[1]SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo,

Malheiros, 1998, p.81.

[2] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo : Malheiros, 1998,

p.23.

[3] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo,

Malheiros, 1998, p.123.

[4] Ob. cit., p. 132.

[5] Ob. cit., p. 132.

[6] Ob. cit., p. 133.

[7] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo : Malheiros, 1998,

p.87.

[8] FERREIRA, Luiz Pinto. Manual de direito constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro : Forense,

1992, p. 173.

[9] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.

[10] TJ/SC, Apelação Civel n° 96.012538-8, de Joinville, Rel. Des. Éder Graf.

[11] TJ/SC, Argüição de Inconstitucionalidade na Apelação Civel n° 50752, de Tubarão, Rel. Des. João José Schaefer.

[12] FRANÇA, Rubens Limongi. Lei. In: Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo : Saraiva,

1977, v.48, p.430.

[13] PAUPERIO, Machado A . Introdução ao Estudo do Direito. 7ª ed. Rio de Janeiro : Forense,

1986, p. 129

[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo :

Malheiros, 1992, p. 47.

[15] Improbidade Administrativa- Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público- 3a Ed. São Paulo, Atlás, 1998, pág. 23.

[16] Ação Civil Pública, Obra Jurídica, 1a Ed. Pág. 122