Uma vez esgotada a possibilidade da interposição de recurso, assim como o ajuizamento de ação rescisória, a provocação do Judiciário visando a obtenção de pronunciamento que necessariamente implique em nova apreciação de fatos acobertados pela coisa julgada ou mesmo a neutralização dos efeitos decorrentes da decisão definitiva tida por imutável, embora se desenhe, a princípio, como medida incabível, teratológica, em excepcionalíssimas hipóteses contudo, parece-me juridicamente possível. [...]
Sidney Eloy Dalabrida
Uma vez esgotada a possibilidade da interposição de recurso, assim como o ajuizamento de ação rescisória, a provocação do Judiciário visando a obtenção de pronunciamento que necessariamente implique em nova apreciação de fatos acobertados pela coisa julgada ou mesmo a neutralização dos efeitos decorrentes da decisão definitiva tida por imutável, embora se desenhe, a princípio, como medida incabível, teratológica, em excepcionalíssimas hipóteses contudo, parece-me juridicamente possível.
Numa perspectiva essencialmente positivista, reconheço, a autoridade da coisa julgada, fundada na necessidade de se evitar a perpetuação dos litígios, mesmo em situações daquele jaez, atuaria como barreira instransponível*, impedindo de maneira absoluta o acesso à justiça.
Assim, ainda nos casos em que a execução do julgado provocasse conseqüências drásticas, causando danos de repercussão avassaladora no patrimônio público, possibilitando, de outro lado, o enriquecimento indevido de particulares, mesmo que decorrente tais efeitos de vícios de elevada grandeza que contaminassem, o julgado na sua essência, restariam travadas todas as portas do Judiciário, restando à entidade pública e à sociedade tão-somente suportar resignada aos nefastos efeitos, para o deleite de terceiros favorecidos com uma lucratividade abusiva e premiados com o imobilismo do defensor dos interesses sociais por conta de sua subserviência cega e irrestrita aos rígidos cânones legalistas.
Porquanto timbrada com o grau de gravidade a me que reportei alhures, para bem focalizar a posição defendida em torno do tema proposto e principalmente sua extensão, trago à lume situação submetida à nossa análise, relacionada com a fixação judicial de indenização escandalosa em sede de ação de desapropriação indireta, em razão da qual foi o Município judicialmente compelido a pagar pelo bem expropriado importância exorbitante, infinitamente superior ao seu valor de mercado, ultrapassando os valores, inclusive, a própria receita mensal do Município, sendo a apontada disparidade fruto exclusivo de erro substancial do próprio julgado que, apesar de deixar entrever como válido apenas a perícia oficial realizada, determinou que servisse como parâmetro da indenização simples laudo de avaliação encomendado pelos credores, viabilizando assim o locupletamento de particulares em prejuízo do erário, tendo o aberrante decisum, porém, transitado em julgado, fluindo também in albis o prazo para o ajuizamento da ação rescisória.
Como a hipótese não retrata caso de nulidade ipsu jure do decisum, vício que impediria a formação da coisa julgada, nem mesmo de erro corrígel* a qualquer tempo (art. 463, CPC), a rigor, com o esgotamento das tradicionais vias impugnativas superada restaria qualquer possibilidade de oposição do Ministério Público aos efeitos decorrentes da decisão judicial.
As particularidades da situação, Iadeada por outras de idêntica feição, todavia, a meu juízo, reclamam do Ministério Público, a quem constitucionalmente se deferiu o munus de velar pelo patrimônio público, uma postura capaz de permitir a superação do parasitismo que lhe impõe a concepção puramente ortodoxa, pela qual seu labor interpretativo se exerce de forma inflexível, sendo o direito concebido como um sistema fechado de normas, concentrado basicamente em pré-conceitos e em verdades absolutas e imutáveis.
Intolerável que o Ministério Público, cedendo comodamente ao discurso dogmático, simplesmente desprezasse a sua condição de defensor do patrimônio público e dos interesses sociais, deixando-se seduzir pela lógica positivista, permitindo a consumação daquela afronta.
Oportuno registrar a direção unânime da doutrina em apontar para a ineficiência dos mecanismos processuais tradicionais para a proteção dos direitos transindividuais, posto que basicamente destinados à solução de lides inter-subjetivas, donde deflui a necessidade de uma nova postura do operador jurídico no trato com direitos daquele espectro, até porque, parafraseando o consagrado RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, com excessivo apego aos cânones tradicionais, ou pela falta de habilidade para adaptá-los às novas exigências, tais interesses fatalmente ficarão marginalizados.
A propósito, em passagem lapidar, preleciona o notável processualista:
"Nesse campo, é fundamental a participação ativa do Poder Judiciário, que poderá, com coragem e criatividade, conferir a necessária plasticidade aos institutos e categorias processuais existentes, adaptando-os a tutela desses interesses difusos, nem como poderá criar, no silêncio ou na falta de previsão normativa, a solução que melhor atenda aos objetivos sociais do caso concreto."
O princípio da razoabilidade, em função do qual não se permite ao aplicador da lei que se desvie dos valores protegidos pelo preceito legal, exceto diante da necessidade de observância de interesses maiores que aqueles por ela tutelados, geralmente hospedados pela Constituição, constitui elemento de inestimável valia ao Ministério Público no desempenho desta nova práxis, devendo ser habilmente manejado como diretriz de interpretação a fim de se viabilizar a proteção do interesse público.
Nesta linha, tomado pela predisposição reclamada pela doutrina, é forçoso reconhecer que se a incidência dos efeitos do instituto da coisa julgada implicar na violação de interesse superior àquele que se pretendeu proteger através de sua instituição, por óbvio, deverá ter sua aplicação flexibilizada.
Inspirada no célebre CANOTILHO, a eminente MARIA EMÍLIA MENDES ALCÂNTARA, adverte:
"A força da verdade legal atribuída à res judicata deverá ceder quanto um outro interesse público mais valioso lhe sobreleve." (in "REVISTA DOS TRIBUNAIS", 1988, páginas 31 e 44).
JUAREZ C. SILVA, com invulgar propriedade, doutrina:
"... não há nenhuma impossibilidade social em restringir ou mesmo afastar a coisa julgada em algumas hipóteses. 0 conceito de coisa julgada é relativo. A imutabilidade dos julgamentos pode faltar sem que desapareça a função jurisdicional. Em suma: a coisa julgada não é um valor absoluto, e no contraste entre ela e a idéia de justiça, esta deve prevalecer." (in "REVISTA DE DIREITO PÚBLICO", Ed. Revista dos Tribunais, página 170).
Com a autoridade que todos lhe reconhecem e o costumeiro brilho de suas manifestações, pontifica a festejada ADA PELEGRINI GRINOVER:
"Há casos, porém, em que a veemência dos vícios da sentença vem realmente abalar as razões em que se fundamenta a imutabilidade dos julgados, fazendo com que, sempre no interesse público, a exigência de justiça prevaleça sobre a de segurança." (in "REVISTA DOS TRIBUNAIS", 716/62).
De outro norte, na hipótese aventada, o enriquecimento indevido de terceiros à custa do patrimônio público municipal é efeito inevitável do cumprimento do decisório, decorrente, o que é pior, de erro exclusivamente judicial, circunstância que se me afigura suficiente para que o Ministério Público, em defesa do patrimônio público, valendo-se de uma visão globalizada do direito, atento aos princípios maiores que o informam, lance mão de uma interpretação que permita a efetivação de seus fins mais nobres, ainda que necessário uma atividade inovadora como meio de atingi-los. O judiciário, poder constitucionalmente incumbido da realização da Justiça, não pode se prestar a servir de instrumento para a satisfação de interesses que o próprio Direito repugna, hipótese caracterizadora de desvio de poder jurisdicional, traduzida pelo "uso do poder judiciário para fim não judiciário" (v.: "REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO", 188, pág. 11), sendo de se realçar que o enriquecimento de terceiros por ela patrocinado às custas do patrimônio público representaria inequívoca violação do princípio da supremacia do interesse público.
Enfrentanto* o tema do enriquecimento ilícito frente à coisa julgada, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, louvando-se no voto do brilhante Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, já decidiu:
"A coisa julgada é resguardada pela Constituição da República (art. 5º, XXXVI). A execução, por seu turno, instrumentaliza a satisfação obtida pelo Exeqüente. O judiciário não se restringe, na prestação jurisdicional, a mero chancelador de petições, ou encara a lei como símbolo, vazio de conteúdo. Cumpre-lhe fiscalizar o processo, a fim de emitir provimento justo. Não pode pactuar com atitudes indignas, espúrias, fraudulentas. Cumpre-lhe impedir o locupletamento ilícito, ainda que o fato seja conhecido após a coisa julgada." (Resp nº 45.174-4/TJ, DJU nº 184, de 26.09.94, página 25.670 - grifos meus).
Diversa não é a posição do brilhante Desembargador ÉDER GRAF, um dos mais notáveis integrantes da Corte Estadual, para quem "o direito cego e absoluto, garantindo o locupletamento indevido, não se compadece com a idéia da justiça, elementar no mais néscio dos cidadãos, porque imanente à própria condição humana" (Agr. Instr. N' 96.000975-2, da Capital).
Longe de representar uma adesão aos apelos dos arautos do Direito Alternativo, a postura que se sugere reclama apenas uma reflexão mais atenta e apurada a respeito das limitações impostas pelo tecnicismo processual quando em conflito com interesses mais relevantes, implicando numa análise integral do Direito, dos princípios fundantes de cada instituto jurídico, enfim no combate a míopia* exegética que, reduzindo o Direito à pura legalidade, escraviza o intérprete, frustrando a realização da justiça e chancelando a iniqüidade.
Já proclamava o incomparável PONTES DE MIRANDA, o jurista "há interpretar as leis com o espírito de seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente. Em outras palavas*, há de interpretar a norma de acordo com a realidade e a teleologia do sistema", destacando CAIO TÁCITO que "os poderes do juiz, embora traçados na lei, certamente contém uma dose de discricionariedade que lhe atribui especialmente as inovações da ordem pública, perante as transformações sociais, um conteúdo criador do direito." (in "REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO", volume 188, página 10).
CARLOS MAXIMILIANO, em sua renomada obra "HERMÊUTICA E APLICAÇAO DO DIREITO", adverte que o direito deve ser interpretado inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência, vá ter a conclusões inconsistentes (Ed. Freitas Bastos, 4ª ed., pág. 205).
O ínclito Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO, com o marcante brilho de seus invejáveis pronunciamentos, anotou:
"A lei, que deve ser entendida em termos hábeis e inteligentes, deve igualmente merecer do julgador interpretação sistemática e fundada na lógica do razoável, pena de prestigiar-se, em alguns casos, o absurdo jurídico." (Resp nº 13.416-0/RJ).
Considero, portanto, que em casos que guardem as peculiaridades daquele aqui aventado, malgrado os obstáculos que a lógica positivista possa oferecer, cumpre ao Ministério Público, através de uma construção jurídica que viabilize o acesso à Justiça e a realização do direito, propor ação civil em defesa do patrimônio público e do interesse social.
Conclusão:
1. Nos casos em, que a execução de decisão judicial, embora transitado em julgado, inclusive com a fluência do prazo da ação rescisória, causar prejuízo ao patrimônio público, patrocinando, por outro lado, o enriquecimento ilícito de particulares, contemplando-os com benefícios que o próprio direito repugna, notadamente por conta de erros judiciais, de rigor a atuação do Ministério Público que, lastreado em uma postura hermenêutica inovadora, liberada da concepção meramente jurídico-formal do direito, deverá promover a ação civil cabível, cumprindo assim sua missão institucional.
Sidney Eloy Dalabrida é Promotor de Justiça/SC
Publicado na Revista da Associação Paulista do Ministério Público, março de 1998, pp. 50/52
Coisa Soberanamente Julgada e a Defesa do Patrimônio Público
Uma vez esgotada a possibilidade da interposição de recurso, assim como o ajuizamento de ação rescisória, a provocação do Judiciário visando a obtenção de pronunciamento que necessariamente implique em nova apreciação de fatos acobertados pela coisa julgada ou mesmo a neutralização dos efeitos decorrentes da decisão definitiva tida por imutável, embora se desenhe, a princípio, como medida incabível, teratológica, em excepcionalíssimas hipóteses contudo, parece-me juridicamente possível. [...]