Você já imaginou ser convocado para ser um dos jurados do Tribunal do Júri no julgamento de um homicídio praticado por uma violenta organização criminosa e ter que discutir a sua posição pela condenação com os outros integrantes do Conselho de Sentença, como é chamado o júri? E, no caso de condenação, por ela ser unânime, todos ficarem sabendo que você votou pela condenação? Sabendo que a sua posição seria exposta e que tanto você quanto a sua família poderiam ser alvo de vingança por parte dos outros integrantes do grupo criminoso, você teria coragem de participar do júri e votar pela condenação do assassino?
As ameaças à atuação independente dos jurados no Tribunal do Júri são apenas um dos inúmeros retrocessos na legislação criminal apontados pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) na atual proposta de Novo Código de Processo Penal (CPP) que está em discussão no Congresso Nacional.
O relatório preliminar do Novo CPP foi apresentado pelo relator da matéria, Deputado Federal João Campos (Republicanos-GO), no dia 14 de abril, e imediatamente começou a receber críticas das instituições que hoje têm a atribuição legal e constitucional de conduzir as investigações. Os riscos à investigação são tão grandes que, em muitos pontos, os impactos das mudanças sugeridas no CPP foram comparados ao que poderia ter ocorrido caso houvesse sido aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 37, que pretendia limitar o poder de investigação do Ministério Público e de outras instituições.
"Podemos voltar a viver tempos difíceis de impunidade caso esse projeto seja aprovado da forma como está. Essa proposta que vai criar um Novo CPP é com certeza a vitória do crime organizado e a ruína de forças-tarefas, como os GAECOs. A sociedade precisa estar atenta. Estão tentando mais uma vez enfraquecer os órgãos de investigação e de combate aos crimes de violência contra a mulher, contra a corrupção, de desvio de dinheiro público e de tantos outros", ressalta o chefe do MPSC, Fernando da Silva Comin.
As primeiras análises no relatório preliminar apresentado à Câmara Federal mostram que aumentam as chances de impunidade, especialmente nos casos de crimes contra a vida julgados pelo Tribunal do Júri - os homicídios dolosos. Isso ocorrerá principalmente pelas restrições ao uso de provas, pela proibição do uso de depoimentos testemunhais coletados durante o inquérito policial, pela eliminação da fase de coleta de provas perante o juiz e pela exposição de testemunhas e jurados na sessão do Júri.
"Caso aprovado como está o substitutivo apresentado ao PL 8045/2010, o futuro CPP afetará a eficiência do inquérito policial, promoverá a deformação do procedimento do Tribunal do Júri e inviabilizará a investigação criminal pelo Ministério Público, constituindo-se, portanto, num instrumento de impunidade e injustiça social", alerta o Coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública (CCR) do MPSC, Promotor de Justiça Jádel da Silva Júnior.
Independência e segurança do jurado sob risco
No Brasil, somente os casos de homicídios dolosos são julgados pelo Tribunal do Júri, em que um Conselho de Sentença, formado por cidadãos comuns, leigos, sem conhecimento de Direito, decidem se o acusado é culpado ou inocente. Antes de um caso chegar ao julgamento pelo Tribunal do Júri, o homicídio é investigado pela Polícia Civil, que remete o inquérito ao Ministério Público. O Promotor ou Promotora de Justiça analisa as provas coletadas pela polícia e, se encontrar indícios de culpa, faz a denúncia à Justiça, propondo uma ação penal pública e pedindo que o réu seja julgado pelo Tribunal do Júri.
Na sessão de julgamento, o júri, composto por sete jurados, decide se o réu é inocente ou culpado por maioria simples de votos e ninguém sabe quem votou contra ou a favor da condenação ou absolvição, o que garante que cada integrante do Conselho de Sentença decida conforme a sua convicção, formada com base no que ouviu da defesa do réu e da acusação durante o julgamento, bem como nas provas e depoimentos testemunhais que estão no processo, não apenas as que foram apresentadas na sessão.
A proposta do Novo CPP, se aprovada, irá atingir diretamente a forma como um caso chegará ao Tribunal do Júri, e as alterações sugeridas irão tornar mais difícil a condenação. Abaixo são detalhados alguns dos retrocessos apontados pelo MPSC com relação aos julgamentos pelo Tribunal do Júri.
Proibição de provas e informações do inquérito policial no Tribunal do Júri
O relatório preliminar de mudança do CPP prevê a proibição de que as provas, depoimentos e informações do inquérito policial sejam usados na sessão de julgamento do Tribunal do Júri. Imagine a seguinte situação: uma vítima é gravemente ferida e, antes de morrer, é ouvida pelos policiais durante o socorro ou no hospital. Nesse período, ainda na fase do inquérito policial, essa vítima identifica o autor do crime e revela informações fundamentais para o esclarecimento do caso, mas, antes de poder depor em Juízo, ela morre, ainda no hospital, em decorrência dos ferimentos. Todas as informações prestadas pela vítima, nessa situação, não poderão ser analisadas pelo Júri.
Exclusão do Sumário de Culpa
Hoje, antes de um processo ser levado ao Tribunal do Júri, nos casos de homicídio ou tentativa de homicídio dolosos, há uma fase preliminar em que as provas coletadas durante as investigações, no inquérito policial e no inquérito criminal do Ministério Público, são submetidas à Justiça, na ação penal, para que o Juiz analise se esses elementos são legais e válidos para serem utilizados no julgamento. É nessa fase que o Juiz também define se o réu deve mesmo ser julgado pelo Tribunal do Júri. O nome dessa etapa é "Sumário de Culpa", e todas as provas, indícios e informações aprovados pelo Juiz nessa fase podem ser apresentadas aos jurados no Tribunal do Júri.
A alteração do CPP obrigará as testemunhas a participarem da sessão do Tribunal do Júri, pois só assim o testemunho será válido para o julgamento. Isso, além de invalidar os depoimentos prestados na fase policial, também fará com que muitas testemunhas possam ser ameaçadas ou mesmo não tenham coragem de depor, pois estariam expostas a represália ou vingança dos parceiros do autor do crime, especialmente nos casos de homicídios praticados por grupos ou facções criminosas.
Devido à demora entre a data do crime e a sessão de julgamento do Tribunal do Júri, muitos outros fatores também podem reduzir as chances de comparecimento das testemunhas, como mudança para outras comarcas ou mortes acidentais ou naturais.
Exigência de decisão unânime para a condenação
Hoje, como já foi dito, a absolvição ou condenação do réu é decidida por maioria simples dos votos dos sete jurados que compõem o Conselho de Sentença e o voto de cada um é secreto. Pela proposta de mudança, para haver a condenação, a decisão deve ser unânime. Além disso, a mudança prevê que os jurados discutam os votos, caso não haja uma primeira votação unânime, de maneira que o Conselho de Sentença possa chegar à unanimidade.
Essa mudança fere o princípio constitucional do sigilo do voto, que é uma garantia para que o jurado decida sem medo de ameaças ou pressões e, com isso, possa decidir apenas de acordo com a sua consciência. Além disso, como a condenação será por unanimidade, logicamente, o voto de todos os jurados será conhecido do público, o que abre portas para vinganças e retaliações.
A exigência de unanimidade, por si mesma, já um fator que aumenta as possibilidades de impunidade, devido à dificuldade de obtenção desse placar. Bastaria um voto contrário para que o réu fosse absolvido.
Impactos na investigação
Além de impactar nos julgamentos do Tribunal do Júri, as mudanças no CPP vão afetar diretamente as investigações do Ministério Público e inviabilizarão a realização de operações por forças-tarefa, como os Grupos de Apoio Especial de Combate às Organizações Criminosas (GAECOs), pois o projeto de lei prevê que o Ministério Público somente poderá investigar quando houver risco de ineficácia da apuração dos crimes em razão do poder econômico ou político.
Além disso, o PL 8.045/2010 dificulta a obtenção de provas dos crimes investigados, restringindo a interceptação telefônica e proibindo ao juiz condenar o réu com base em provas indiciárias, o que pode aumentar a impunidade.
Então o Ministério Público é contra o Novo Código de Processo Penal?
O Código de Processo Penal brasileiro é uma legislação concebida na década de 1940, ainda durante o regime do Estado Novo, do Presidente Getúlio Vargas. Mesmo sofrendo pequenas alterações e atualizações desde então, esse conjunto de normas legais que regem os processos e julgamentos de crimes necessitam de adequações visando tornar a legislação mais apropriada à realidade do século XXI.
O Ministério Público não é contra mudar o CPP, desde que seja para tornar os processos mais ágeis, eficientes e de acordo com a sociedade moderna. Para o Ministério Público de Santa Catarina, o problema da proposta apresentada à Câmara dos Deputados são justamente os retrocessos que o texto traz para legislação e os riscos de aumento da impunidade, tanto em crimes violentos quanto nos chamados "crimes do colarinho branco".