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No último dia 17 de março o colega promotor de justiça José Daura fez 100 anos. Os predicados de um homem que completa um século de vida durante uma pandemia são vários, mas o que particularmente me interessa na vasta biografia do nosso ex-Procurador-Geral de Justiça (o mais velho vivo no país) é a sua participação num dos casos criminais mais célebres de Santa Catarina.

Daura foi o autor da denúncia do Processo do Linchamento de Chapecó, nada menos que um dos maiores e mais complexos processos da história criminal de Santa Catarina.

Para resumir, em 1950, pouco depois das eleições municipais, enquanto ainda se contavam os votos e tudo indicava que o PSD perderia o comando político para o PTB, a igreja matriz de Chapecó foi incendiada criminosamente. Quatro homens foram presos, dois injustamente. Sem acusação formal, eram torturados na fazenda do delegado de polícia da cidade.

Quando boatos surgiram de que a Justiça removeria os presos para outra comarca, aproximadamente 200 homens se organizaram para fazer justiça com as próprias mãos.

Munidos de paus, facões e armas de fogo, cercaram a cadeia, atacaram os presos e os lincharam. Os corpos foram arrastados e empilhados à vista do público que se aglomerava sobre as pedras de uma escola em construção.

Um galão de gasolina. Um fósforo. Aplausos, tiros, uivos, gritos. A comemoração naquela fogueira macabra duraria pouco, quiçá por pressentirem os autores de tão horrendo crime, logo que o fogo apagou, o destino que os aguardava pelos próximos anos.

Cientificado por telégrafo, secretário de segurança Lara Ribas despachou um pelotão para Chapecó. A cidade foi sitiada. Um delegado especial assumiu o caso e concluiu a investigação de duas mil páginas em pouco mais de um mês. Centenas de testemunhas e suspeitos foram inquiridas numa sala da Câmara de Vereadores, onde os sons das máquinas de escrever se misturavam no ar com a fumaça de cigarros de palha e charutos. Enquanto isso, lá fora, os cavalos, impacientes, rascavam o chão de terra batida ao sentirem o medo na voz trêmula de seus donos.

Concluído o inquérito era então necessário formular a acusação. Analisar as nuances de cada depoimento, definir a responsabilidade de cada um, a conduta de cada suspeito, organizar a melhor estratégia para o caso e postular em juízo a punição dos réus.

Com 29 anos, o promotor José Daura, recém-chegado a Chapecó, debruçou-se sobre o caso. Munido apenas da sua máquina de escrever e de uma incrível capacidade de análise, o hoje centenário promotor passou os dias que se seguiram lendo, organizando, reorganizando, capitulando e identificando a conduta de cada um dos oitenta e três réus.

Foi preciso mais que técnica jurídica. Foi preciso coragem, independência. Lá estavam empresários, proprietários rurais, industriais, e até mesmo o delegado de polícia, cacique político daquela cidade que em área e em população era uma das maiores do Estado, território pretendido do Iguaçu e disputado há pouco tempo pelo Paraná, dada a riqueza da madeira e das terras.

Para José Daura nomes ou sobrenomes pouco importavam. Ricos, pobres, poderosos ou não, todos sem exceção foram se sentar juntos na dura cadeira de acusado à espera do julgamento pelo júri. Os dias não passavam tão rápido assim. Entre jogos de cartas e as músicas de Emilinha Borba, Francisco Alves e Cauby Peixoto em suas radiolas, os dois longos anos de prisão preventiva no moinho marcaram uma geração.

O processo levou 24 meses. O julgamento foi desaforado para a Comarca de Porto União, para evitar a pressão nas autoridades locais dos poderosos envolvidos. Foram realizados seis júris, um deles, o principal, com 42h de duração. Para se manterem acordados, jurados, promotor, juiz, advogados e os funcionários do fórum tomaram Pervertin, o mesmo estimulante utilizado pelos exércitos alemães da 2ª Guerra Mundial.

Dos 83 acusados, os jurados decidiram condenar o organizador do linchamento, que recebeu a pena de 24 anos de prisão, e outros cinco envolvidos, condenados a dois anos. O delegado de polícia autor das torturas e corresponsável pelo linchamento foi condenado a 25 anos, mas reverteu o julgamento num novo júri, seis anos depois de lavar as mãos para o linchamento que, sabia e havia sido alertado, ocorreria logo mais debaixo dos seus bigodes.

José Daura dosou o rigor da lei na medida certa. Deixou à soberania dos vereditos a decisão final do caso, como manda a Constituição ainda hoje.

São 100 anos de vida, 28 anos deles dedicados com bravura e energia a promover a justiça, mas estimo que bastaria aquele caso célebre para com razão assegurar a José Daura um espaço proeminente no panteão das grandes personalidades do Ministério Público brasileiro.

Eduardo Sens dos Santos é promotor de justiça em Chapecó. Escritor premiado pela Academia Catarinense de Letras pelo romance De Quando Éramos Iguais, pesquisa atualmente o Processo do Linchamento para seu próximo livro, uma ficção histórica.