O nome que se dá à data celebrada nesta quinta-feira, 21 de setembro, é "Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência". No entanto, seria igualmente justo defini-la como um dia de lutas, no plural, o que traduz a multiplicidade dos obstáculos que se impõem ao referido grupo social neste e em todos os outros dias. O capacitismo é uma dessas formas de discriminação. 

Definido como o preconceito que a pessoa com deficiência sofre por ter sua existência relacionada à incapacidade, o capacitismo reduz a integralidade do ser humano à experiência da deficiência. O uso de termos pejorativos e de expressões inadequadas e a ausência de pessoas com deficiência nos mais diversos espaços da sociedade são exemplos desse tipo de discriminação, que tornam a data de hoje um momento necessário de reflexão."

Como salienta a Coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e Terceiro Setor (CDH) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), Ana Luisa de Miranda Bender Schlichting, por muito tempo nossa sociedade foi estruturada excluindo as pessoas com deficiência dos espaços políticos e sociais relevantes. "Nas últimas décadas essa realidade modificou-se com o fortalecimento dos movimentos sociais das pessoas com deficiência, que ganharam força e voz, provocando-nos a refletir sobre o conceito de deficiência", diz. De acordo com a Coordenadora, "a deficiência é apenas uma das formas de experimentar a vida. As limitações não estão na pessoa, mas na sociedade e na forma como encaramos as diferenças", completa. 

Post

A atuação do MPSC em prol das pessoas com deficiência 

Para combater o capacitismo e as demais formas de preconceito contra as pessoas com deficiência, o MPSC vem atuando em diversas frentes. Ouvir pessoas dos diferentes segmentos é um dos pilares do grupo SC Acessível, um programa interinstitucional coordenado pelo MPSC que busca enfrentar as barreiras impostas às pessoas com deficiência. Diversas entidades participam do SC Acessível, que é gerido pelo CDH. 

Com foco nas questões de acessibilidade, o SC Acessível ampliou seu escopo de atuação em 2023. Em junho, o grupo se reuniu e decidiu fortalecer as ações de combate ao capacitismo, bem como os debates sobre acessibilidade educacional, entre outros aspectos relacionados à inclusão social e que violam os direitos das pessoas com deficiência a uma vida digna e em equidade de condições em relação às demais pessoas. 

Com base nas demandas que surgiram a partir das discussões do grupo, o CDH prepara para o mês de novembro um evento sobre acessibilidade e os espaços de lazer e turismo. A ideia do evento é provocar a reflexão da sociedade e do poder público a respeito da importância de que todos os ambientes da sociedade estejam acessíveis e acolhedores a todas as pessoas, indistintamente.

De acordo com a Coordenadora do CDH, Ana Luisa de Miranda Bender Schilchting, "a ausência de pessoas com deficiência nos ambientes de convívio social, em razão de barreiras arquitetônicas, urbanísticas, comunicacionais e atitudinais, precisa ser percebida. Precisa nos constranger e nos fazer questionar. Esperamos com o evento despertar o poder público e a sociedade para essa realidade", pontua.

Ao lado do MPSC, integram o grupo SC Acessível a Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (ALESC), a Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Santa Catarina (OAB-SC), o Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC), o Ministério Público de Contas de Santa Catarina (MPC-SC), a Federação Catarinense de Municípios (FECAM), a União dos Vereadores de Santa Catarina (UVESC), a Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), a Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE), o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA-SC), a Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade do Estado (SIE-SC), a Associação Catarinense de Engenharia de Segurança do Trabalho (ACEST), o Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRE-SC), o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONEDE-SC) e Conselho de Arquitetura e Urbanismo.

Parceria com as universidades por mais acessibilidade 

Ainda com foco na acessibilidade espacial, o CDH está em fase de negociação com cursos de Engenharia e Arquitetura de todo o estado para que prestem suporte às Promotorias de Justiça interessadas em receber auxílio na análise dos requisitos de acessibilidade de procedimentos em tramitação no Ministério Público.

A ideia, que surgiu a partir da iniciativa pioneira da Promotora de Justiça na Comarca de Laguna, Bruna Gonçalves Gomes, é firmar um termo de cooperação técnica com as instituições de ensino superior que demonstrarem interesse no projeto. Para a Coordenadora do CDH, "as denúncias de descumprimento dos requisitos de acessibilidade arquitetônica estão entre as maiores demandas que chegam às Promotorias de Justiça no que diz respeito às pessoas com deficiência", conta. 

"Acreditamos que com a pactuação do termo de cooperação todos ganharão: o Ministério Público, que terá suporte técnico nas investigações que conduz sobre a acessibilidade; os estudantes dos cursos de Arquitetura e Engenharia, que poderão vivenciar na prática o que aprendem em teoria e, principalmente, conduzir sua formação já com uma perspectiva de respeito aos direitos humanos; e a sociedade, que se beneficia diretamente com uma atuação qualificada por parte do Ministério Público", finaliza Ana Luísa.


as lutas de quem busca ser reconhecido

A atuação do MPSC está voltada a conceder autonomia e visibilidade e garantir os direitos das pessoas com deficiência, para que elas sejam protagonistas de suas vidas e das lutas políticas. Esses objetivos são partilhados por duas mulheres catarinenses, figuras importantes na luta contra o capacitismo e as demais formas de preconceito. 

Marcilene Aparecida Alberton Ghisi e Karla Garcia Luiz têm trajetórias de vida diferentes e razões distintas as levaram até os postos de referência que ocupam hoje, mas ambas compartilham o desejo, por meio de seus ativismos, de uma sociedade verdadeiramente inclusiva.

Neste Dia Nacional da Luta das Pessoas com Deficiência, conheça a história delas:

Post

Os livros que fizeram Marcilene perceber o mundo

Marcilene Aparecida Alberton Ghisi - ou Marci, como gosta de ser chamada - tem 53 anos e nasceu em Orleans, no Sul do estado. Ela tinha apenas 45 dias de vida quando sua mãe a levou ao oftalmologista, que diagnosticou a cegueira. A criança havia nascido com deficiência visual e não poderia enxergar, mas o médico logo tratou de tranquilizar a mãe, dizendo que seria possível alfabetizar a filha em Florianópolis, onde havia uma escola que ensinava crianças cegas a lerem. 

A informação do médico foi fundamental para o que se sucederia na vida de Marci dali em diante. A família deixou o interior quando ela tinha dois anos de idade e se mudou para a capital catarinense em busca de educação para a filha. "Isso é algo que me vem à cabeça com recorrência, de que aquele médico não foi capacitista. Ao contrário dos episódios de capacitismo médico que vemos hoje, naquele momento ele deu um diagnóstico, e não uma sentença. Mostrou a oportunidade, a possibilidade. Aquilo mudou a minha vida", diz Marci.

A família encontrou a escola e Marci recorda ter uma educação baseada na integração, embora a educação não fosse especial para crianças com deficiência visual. "Nós corríamos atrás do material. Minha mãe, irmã e amigas ficavam até a madrugada lendo e gravando textos para mim. Tudo foi bastante colaborativo, mas também cansativo", comenta. Marci ainda fez curso de magistério e, em 1988, foi aprovada no vestibular para cursar Pedagogia. 

É então que surge em sua trajetória a entidade na qual Marci construiria alguns dos principais projetos de sua vida. Logo depois de começar a cursar Pedagogia, ela recebeu um convite para ser professora substituta na Associação Catarinense para Integração do Cego (ACIC), onde permanece trabalhando até hoje. Em função de outros compromissos, precisou interromper o curso, mas voltou aos bancos universitários em 1996 e se formou pedagoga em 2000. 

A titulação alavancou ainda mais sua carreira. Marci exerceu várias atividades no começo dos anos 2000, o que também lhe rendeu experiência e conhecimentos sobre as pessoas com deficiência visual. Um dos trabalhos que teve foi ser tutora em uma turma de Pedagogia da UDESC, atendendo 20 estudantes com deficiência visual. Todos concluíram o curso e hoje trabalham em várias regiões do estado. 

Contudo, o trabalho que Marci exerce atualmente talvez seja um dos mais importantes para a pedagoga. Na ACIC, Marci atua na biblioteca comunitária. Diariamente cercada de livros, ela lembra que só chegou a Florianópolis quando criança porque a principal razão para a mudança da família era justamente a leitura. "Eu acredito que estou aqui por uma razão muito forte, já que eu comecei a minha história dentro da leitura. Vim para Florianópolis porque o médico disse que eu poderia ler. Sempre fui muito ligada à leitura. Ler é um antídoto para dores e a leitura transforma vidas. Estar na biblioteca é um grande presente", salienta. 

Pelas mesmas razões que os livros permitiam a ela perceber o mundo, Marci também quer levar adiante o poder da leitura para outras pessoas cegas. "Aqui, nós conseguimos proporcionar às pessoas uma ponte para mudanças, para que elas vão trabalhando sua essência. Nós aqui somos a ponte desse processo, que leva à inclusão em várias instâncias, dentro dos espaços sociais, ao entendimento de quem cada um de nós é, de nossa identidade, do resgate de quem somos", acrescenta. 

O poder da leitura também serve como recomeço para quem perdeu a visão ao longo da vida, conta Marci. "Temos aqui muitas pessoas que perderam a visão e que, com isso, elas próprias se perderam no processo. Aqui é um espaço para elas se reencontarem. É algo potente, um espaço para se redescobrir, retrilhar, refazer o seu caminho de vida", diz. "Aqui, nós oportunizamos um direito, que que é o direito à leitura. E ele multiplica direitos. Multiplicar direitos é essencial para esse mundo em que vivemos, no qual ainda é preciso seguir lutando para garantir o que já temos", finaliza.

biblioteca da acic foi revitalizada com recursos do frbl

A Biblioteca da ACIC, onde trabalha Marci, foi reinaugurada em 2021, após uma revitalização custeada com recursos do Fundo para a Reconstituição de Bens Lesados (FRBL), que é gerido pelo MPSC. O local passou por obras de ampliação e modernização e adquiriu novos títulos para o seu acervo.

Com valor de R$ 284 mil, o projeto também possibilitou o aumento e a diversificação do acervo em braille com obras de escritores catarinenses e publicações em diversos gêneros literários. Os recursos ainda foram aplicados para aumentar o número de computadores e adquirir equipamentos e mobiliários mais modernos, melhorando os recursos de acessibilidade e aumentando a capacidade de atendimento ao público, para dar conta da demanda e possibilitar a expansão dos serviços da biblioteca.

Veja mais aqui

Post

Karla e o protagonismo como chave para a justiça social 

Engajamento com a causa é o que define a vida e a carreira de Karla Garcia Luiz, 38 anos, psicóloga no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), campus de São José. Desde cedo ela sabia a profissão que gostaria de seguir, mas não imaginou que seu trabalho a conduziria para os espaços de debates sobre os direitos das pessoas com deficiência. 

Natural de Garopaba, Karla tem deficiência física e se orgulha de ter tido uma educação de qualidade na infância. Estudou em escola pública, se formou e foi cursar Psicologia. Quando graduada, recebeu um convite para trabalhar na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e então percebeu que precisava buscar novas qualificações. Fez mestrado e doutorado e se tornou uma pesquisadora referência na área. 

A jornada de estudos de Karla a fez entender a importância de acompanhar e participar do movimento político em prol das pessoas com deficiência. Desde o começo de 2023, ela integra o Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CMDPD) de Florianópolis, na condição de representante do Conselho Regional de Psicologia (CRP). Fazer parte do CMDPD é, para Karla, uma forma de garantir que as políticas públicas para as pessoas com deficiência sejam criadas e planejadas por quem vive na pele as dificuldades. 

"Durante décadas, nós fomos pessoas tuteladas. Pessoas sem deficiências e que trabalham para pessoas com deficiência falavam e faziam as coisas em nosso nome, e há ainda resquícios disso hoje. Nós temos que tomar a rédea dessa situação, porque isso tem a ver com as nossas vidas. Temos todo direito de dizer o que cabe e o que não cabe para nossa existência¿, pontua Karla."

Nas reuniões do CMDPD, ela faz sugestões e conduz reflexões e questionamentos, contribuindo para que as decisões do conselho sejam tomadas considerando a realidade das pessoas com deficiência. "Tento ser atuante, ser propositiva, porque entendo que esse lugar é muito caro para nós. Por saber que esse lugar por muito tempo foi ocupado por pessoas que não tinham deficiência e que falavam por nós é que o reconheço como importante para nossa vida e vejo o quanto é importante estar nesse espaço", comenta.

Por isso, Karla faz um chamamento às pessoas com deficiência para que se engajem nos instrumentos de controle social, como os conselhos. "Politizar a deficiência é bastante importante. Defender os direitos da pessoa com deficiência não tem a ver com amor, caridade ou benevolência, assistencialismo. Tem a ver com justiça social, e nós temos que assumir esse papel", reforça. "Assim como discutimos raça, orientação sexual, identidade de gênero, questões de classe, tudo isso precisa ser politizado para a garantia de direitos, e com a deficiência precisa ser assim para que ocorra a construção de políticas de direitos que vão impactar as nossas vidas", conclui.

Cada uma a seu modo, Marci e Karla encontraram caminhos para lutar por equidade e respeito e para combater as discriminações. Ambas, ao lado de tantas outras pessoas com deficiência, aliadas e aliados na luta anticapacitista, visibilizam a importância de um engajamento político e coletivo por justiça social.