Justiça Restaurativa é destaque em evento virtual nacional promovido pelo MPSC
Práticas restaurativas são apresentadas como alternativa eficaz ao modelo punitivo, com foco na reparação, no diálogo e na transformação social.
Com respaldo legal cada vez mais amplo e resultados concretos em áreas como a socioeducação e o enfrentamento à violência de gênero, a Justiça Restaurativa vem se consolidando como uma abordagem eficaz, humanizada e transformadora na resolução de conflitos. A avaliação é da Procuradora de Justiça do Paraná Samia Saad Gallotti Bonavides, referência nacional na área, que compartilhou suas contribuições sobre o tema em um encontro nacional virtual promovido pelo Núcleo de Práticas Integrativas e Autocompositivas (NUPIA) e pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) nesta terça-feira (23/9).
Durante o evento, que reuniu cerca de 200 participantes, Samia destacou que, mais do que reconhecer os avanços já alcançados, o desafio atual é ampliar a aplicação da Justiça Restaurativa no cotidiano institucional, especialmente no âmbito do Ministério Público.
Em sua fala, a Procuradora de Justiça ressaltou que a Justiça Restaurativa não se limita a um conceito único, mas representa um conjunto sistêmico de princípios, métodos e técnicas voltados à conscientização sobre os fatores que motivam os conflitos. "Precisamos ressignificar a atuação do Ministério Público nesse quadro. A Justiça Restaurativa depende da cooperação institucional e da articulação com outras instituições públicas", afirmou.
Ela também destacou que o trabalho do MP precisa estar alinhado aos desafios contemporâneos. "Nossa atuação no século XXI deve considerar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que projetam o nosso futuro. Precisamos estimular o respeito, a igualdade, o bem-estar. Este é o preâmbulo da nossa Constituição", afirmou.
Ao abordar a cultura institucional, Samia foi enfática: "Temos uma cultura muito forte em relação ao Estado punitivo, que reflete uma sociedade com índole punitivista. A Justiça Restaurativa se importa - e muito - em cuidar das necessidades das pessoas. Não precisamos ter só métodos que combatem violência com violência. Podemos ter outros métodos também".
Ela também chamou atenção para a importância de transformar as relações interpessoais por meio de práticas restaurativas: "Quando se fala em métodos autocompositivos que têm como transformar as relações pessoais, esses métodos estão no âmbito da Justiça Restaurativa".
Sobre os impactos da violência, especialmente em contextos de gênero, Samia afirmou que a preocupação passa somente pela punição do agressor, "como se isso fosse reparar as feridas". No entanto, afirmou, a reparação efetiva demanda outras respostas e interações para poder seguir em frente. "É sempre bom pensar na vida após o trauma, na vida após o conflito", atentou.
Ela também compartilhou dez princípios para viver de forma restaurativa, entre eles tentar estar consciente do impacto, assumir a responsabilidade quando ações impactarem os outros negativamente, tratar os outros com respeito, ouvir com profundidade e compaixão e levar os relacionamentos a sério.
Facilitadores e fomentadores
Durante o encontro, Samia também abordou os papéis estratégicos de facilitadores e fomentadores na consolidação da Justiça Restaurativa no Ministério Público. Segundo ela, os facilitadores são membros que passam por uma formação específica para conduzir práticas restaurativas, como os Círculos de Construção de Paz. "Esses profissionais aplicam a metodologia no cotidiano, conduzem reuniões com abordagem colaborativa, gerenciam equipes com práticas restaurativas e desenvolvem projetos e programas que fortalecem o diálogo institucional", explicou.
Já os fomentadores, conforme detalhou, são aqueles que atuam na difusão do tema dentro e fora da instituição, mesmo sem conduzir diretamente as práticas. "Eles promovem iniciativas, identificam casos com potencial restaurativo e contribuem para a estruturação de políticas com maior alcance coletivo e transformador", afirmou.
Justiça Restaurativa e violência de gênero
A abordagem restaurativa também foi discutida no contexto da violência doméstica e de gênero. Samia destacou que esse tipo de violência, enraizado em estruturas patriarcais e no desequilíbrio de poder, exige respostas mais amplas que a simples punição do agressor. "A punição não tem sido suficiente para prevenir a reincidência nem para atender às reais necessidades da vítima. É preciso oferecer soluções que contribuam para sua emancipação e reconstrução", disse.
Ela também alertou para os riscos da aplicação inadequada de métodos conciliatórios nesses casos. "Há o receio de que práticas malconduzidas possam invisibilizar o desequilíbrio de poder e reprivatizar a violência, o que reforça a importância de uma abordagem ética e cuidadosa", afirmou.
A discussão foi contextualizada com marcos legais como a Lei Maria da Penha, os Juizados Especializados e o Protocolo do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Resolução 492/2023), além do ODS 5 da ONU, que trata da igualdade de gênero.
Justiça Restaurativa e socioeducação
A aplicação da Justiça Restaurativa na socioeducação também foi destacada como uma frente promissora. Samia Bonavides lembrou que a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) prioriza práticas restaurativas na execução de medidas aplicadas a adolescentes em conflito com a lei. "A legislação valoriza a autocomposição, o atendimento às vítimas e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, sempre com foco na responsabilização ativa e na reparação dos danos", afirmou.
Ela apresentou como exemplo o projeto Oitiva Informal Restaurativa, desenvolvido no Paraná, que já beneficiou 488 adolescentes. "O projeto foi estruturado em três etapas, desde Promotorias-piloto até sua expansão institucional, e recebeu o prêmio `Prata da Casa¿ do MPPR pelo caráter inovador e transformador", destacou.
Casos complexos e atuação escalonada
A Procuradora de Justiça compartilhou experiências em casos de alta complexidade, como o de um tiroteio com múltiplas mortes. "Diante da ausência de consenso sobre os fatos e da repercussão midiática, compreendemos que não seria viável iniciar um procedimento autocompositivo entre os réus. Optamos por começar com os familiares das vítimas fatais, identificando necessidades e vulnerabilidades para encaminhá-los às redes de apoio competentes", explicou.
Segundo ela, essa abordagem escalonada permite o desenvolvimento de práticas com teor restaurativo em paralelo ao trâmite regular da ação penal, reservando a atuação com os réus para um momento posterior, quando as condições jurídicas estiverem mais claras.
Expansão normativa e institucional
Encerrando sua participação, Samia destacou que a Justiça Restaurativa é uma realidade jurídica no Brasil, com crescente previsão normativa. Ela citou resoluções e recomendações que consolidam essa política pública:
"O CNJ declarou 2025 como o Ano da Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Isso reforça o compromisso institucional com a consolidação e expansão dessas práticas no Sistema de Justiça brasileiro", concluiu.
Mediadora do encontro que promoveu reflexões e trocas de experiências entre os participantes, a Promotora de Justiça Iara Klock Campos compartilhou sua admiração pela trajetória da convidada. "Desde que iniciei meus estudos em Justiça Restaurativa, lá em 2014, sempre acompanhei os movimentos da Samia. Estou muito realizada de estar diante dela, ouvindo-a ao vivo. É um grande momento para despertar a importância e a efetividade da Justiça Restaurativa", declarou.