A análise do texto do anteprojeto da Lei de Proteção de Dados para Segurança Pública e Persecução Penal (LGPD Penal) detectou dispositivos que podem inviabilizar investigações e o cumprimento das funções do Ministério Público e de outras instituições no combate ao crime, além de inconsistências constitucionais que ameaçam a segurança pública como direito fundamental.
O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) entende que é necessária uma reformulação estrutural no anteprojeto da Lei de Proteção de Dados para Segurança Pública e Persecução Penal (LGPD Penal) para que o texto realmente promova o equilíbrio entre a proteção aos direitos individuais do cidadão à privacidade e à proteção de seus dados pessoais sem ameaçar o direito fundamental à segurança pública nem prejudicar o combate ao crime e a eficiência do sistema penal.
Essa é a principal conclusão a que chegou o Centro de Apoio Operacional Criminal (CCR) do MPSC após analisar a proposta de uma legislação para o tratamento de dados no âmbito das atividades de segurança pública, de persecução e de repressão de infrações penais elaborada pela comissão de juristas instituída pela Presidência da Câmara de Deputados.
A Nota Técnica n. 0005/2020/CCR aponta vários dispositivos "com inconsistências constitucionais" e que poderiam inviabilizar investigações, pois "o comando legislativo que decorre do anteprojeto em estudo está em absoluto descompasso com a imprescindível integração entre os órgãos de segurança pública e persecução penal e o Ministério Público na defesa do direito fundamental à segurança pública (art. 5º da CF) e à persecução penal".
Entre os problemas apontados está o tratamento desproporcional entre os direitos e garantias individuais e o direito social à segurança pública e persecução penal, que, se não for corrigido pela redação final, irá causar "a redução da atividade persecutória do Ministério Público, afetando diretamente as suas atribuições constitucionais".
O anteprojeto da LGPD Penal, da forma como foi proposto, restringe o acesso do Ministério Público a dados que hoje são obtidos por meio de requisição direta, como informações fiscais e registros telefônicos, por exemplo, conforme orientação já consolidada pelo STF e pelo STJ.
O estudo do CCR alerta que isso "afeta gravemente o exercício das atribuições que a Constituição da República atribui ao Ministério Público, em especial a prerrogativa de defesa do direito à segurança pública (art. 127 caput c/c o art. 5º, ambos da CF), de promoção da ação penal pública (art. 129, I) e o seu poder requisitório (art. 129, VI e VIII)".
Anteprojeto ignora exemplos de leis internacionais de proteção de dados
A análise do anteprojeto feita pelo CCR constatou vários pontos em que o texto, além de ser inconsistente com a Constituição Federal ao "não contemplar a segurança pública como direito fundamental (CF, art. 2º, art. 5º, caput, art. 6º, art. 144, caput e § 7º)", também ignora legislações internacionais que regulamentam a proteção de dados pessoais sem prejudicar o equilíbrio entre os direitos individuais à privacidade e propriedade particular dessas informações e o acesso a dados com o objetivo de garantir a lei e combater a criminalidade.
Como salienta a Nota Técnica n. 0005/2020/CCR, as garantias individuais já são amplamente asseguradas com a legislação atual frente a eventuais abusos de autoridade que possam ser praticados durante as investigações e os processos penais, mesmo com relação aos dados pessoais protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) recentemente aprovada no Brasil.
Segundo o estudo, o anteprojeto "incorre em fragilidade constitucional" ao restringir o compartilhamento de dados entre o Ministério Público e os órgãos de segurança pública, o que não ocorre nem mesmo na LGPD brasileira nem "na Diretiva (UE) 2016/680 (artigo 45, 2), na LGPD Portuguesa (Lei n.º 59/2019, art. 43) e na Lei Federal de Proteção de Dados Alemã, de 30 de junho de 2017 (arts. 7º, 9º, 60). Aliás, ao contrário do que pretende o anteprojeto de LGPD Penal brasileira, a Diretiva (UE) 2016/680, em seu Considerando 7, destaca a necessidade de facilitar o intercâmbio (compartilhamento) de dados pessoais entre as autoridades competentes, a fim de 'assegurar a eficácia da cooperação judiciária em matéria penal e da cooperação policial', ou seja, a Diretiva excetua do controle exercido pelas autoridades públicas o tratamento de dados pessoais realizados pelos Tribunais e pelo Ministério Público no exercício de suas competências constitucionais".
Um exemplo de como a LGPD Penal pode prejudicar o combate e a prevenção ao crime, caso o texto do anteprojeto seja aprovado como proposto, é que toda pessoa teria o direito irrestrito de obter informações sobre como os seus dados pessoais estão sendo usados em qualquer esfera do poder público, mesmo no caso em que ela é objeto de uma investigação criminal. Dessa forma, "o anteprojeto promove o prejuízo de inquéritos e investigações criminais, de medidas de prevenção e repressão a infrações penais, atingindo de frente políticas de segurança pública, atividades de inteligência e a direitos e liberdade de terceiros atingidos por atividades criminosas", alerta a nota técnica.
Leia a íntegra da Nota Técnica 0005/2020/CCR.